Artigo Publicado no Nº18 da Revista Aldraba
Dezembro de 2015
ALDRABA - Associação do Espaço e Património Popular
Texto e Fotografia: Fernando Cerqueira Barros [1]
No extremo
Norte do concelho de Arcos de Valdevez (distrito de Viana do Castelo),
encaixado entre as margens de um rio Vez ainda em início de vida (mas ao qual
recentemente quiseram tirar a vida), [2] e as
encostas abruptas da vertente Noroeste da Serra da Peneda, localiza-se a
freguesia de Sistelo.
1 - Sistelo, Arcos
de Valdevez
Terra de uma
beleza ímpar, marcada pelos fortes contrastes entre a paisagem fortemente
humanizada do vale do Vez, e uma paisagem mais aberta e de largos horizontes
dos altos aplanados da Serra da Peneda (mas não por isso menos humanizados), a
freguesia é composta pelos lugares de Sistelo (Igreja), Padrão, Porta Cova,
Estrica, Quebrada e Portela de Alvite (este na fronteira com o concelho de
Monção).
2 - Sistelo,
contraste na paisagem entre o retalhamento por socalcos no Vale do Vez e a
paisagem de montanha na "branda"
do Alhal
Póvoa
medieval, fundada por Roy Pelais de Val
de Vez, desde os primórdios teve uma forte ligação com a vizinha Paróquia
de Cabreiro, à qual pertenceu. No séc. XIII a importância estratégica desta
vertente da serra (nomeadamente na interligação e proximidade que tinha à via
de penetração que desde as terras altas de Castro Laboreiro, unia a fronteira
com a Galiza até às Terras do Vale do Vez), levou o monarca D. Afonso III, em
1271, a dar Carta de Foro a seis casais de Sistelo, para povoarem e trabalharam
o então "monte ermo" de Padrão (Padron), [3] com
limites e designações que, passados mais de sete séculos ainda permanecem na
memória e toponímia destes lugares.
É portanto
uma terra marcada pela geografia e pela história, dos homens que a pulso
construíram o seu território, e sabiamente o estruturaram e organizaram. As
fortes diferenças de declive originaram microclimas distintos dentro da própria
freguesia, os quais estão diretamente associados, quer às diferenças de
altitude, quer às disponibilidades hídricas e de insolação, que distinguem
claramente as áreas profundas e encaixadas do Vale do Vez e corgas [4]
adjacentes, das áreas de montanha e alta montanha, que se aproximam do topo
aplanado da Serra da Peneda.
A criação de
gado bovino da raça Cachena foi, desde longa data, um dos pilares mais
importantes da economia familiar de todas as comunidades serranas da Peneda
(tal como o atesta, por exemplo, o testamento de Mumadona do séc. X - "vacas quantas temos na Várzea e no
Soajo e quantas possuímos nas encomunhões com os nossos colonos" [5] ), o
que, associado com a exiguidade dos espaços férteis de vale, e a forte
disponibilidade de pastos de alta montanha, passíveis de exploração (sobretudo
na época estival), foram pontuando a serra de currais e "brandas",[6] lançando
bases para a estruturação de um uso transumante e sazonal do espaço, entre as
áreas baixas de vale utilizadas durante todo o ano (e onde se implantam as
aldeias), e as áreas de alta montanha (impraticáveis no inverno devido ao gelo
e às neves), para onde sobem os gados entre Março/Abril, e onde permanecem até
Setembro/Outubro (onde se implantam as "brandas"),
locais já edificados, em alguns dos casos, no período medieval - séc.XIII -
como o atesta a referência ao "Curial de Lamelas" ("Branda" de Lamelas, em
Cabreiro).
3 - Sistelo:
Gado Bovino e construções pastoris na "branda"
da Gêmea
Outro dos
pontos fundamentais para a estruturação deste território foi a introdução, a
partir do séc. XVI, da cultura do milho Maiz. As necessidades de regadio
obrigaram ao retalhamento das pendentes das zonas de vale em monumentais
socalcos, criando dessa forma patamares horizontais que sustêm a água e
permitem a rega, esta proveniente de diversas levadas, algumas das quais utilizando
água do rio, corgas, e outras provenientes de nascentes e poços. Foi
precisamente a cultura do milho, e a construção dos socalcos que deixou uma das
marcas mais fortes na paisagem de Sistelo, sobretudo no seu trecho entre
Sistelo e Porta Cova. A estes associam-se os espigueiros (ou canastros),
destinados à guarda e secagem do milho, edificados com a estrutura principal em
granito e as paredes laterais em madeira, elevados de forma a evitarem a
humidade do solo, e protegidos da subida dos roedores, por mós, ou mesas, salientes.
No seio das densas aldeias, que caracterizam o povoamento concentrado de
montanha, os espigueiros agrupam-se, implantando-se nas áreas de melhor
exposição ao sol e aos ventos, garantindo uma melhor conservação do cereal.
4 - Socalcos
no Vale do Vez, entre Padrão e Porta Cova e Espigueiros em Padrão
Esta
dualidade vale/montanha foi sendo explorada e incrementada, a partir da
revolução do "maiz", tendo
determinados factores contribuído para uma busca cada vez mais intensa das
áreas de alta montanha, que passaram a ser exploradas já não só em busca do
pasto estival para os bovinos, mas também, a partir de determinada altura, para
um uso agrícola, tendo as "brandas",
inicialmente apenas pastoris, passado a locais também de cultivo, inicialmente através
da realização de cachadas [7] para
centeio, e posteriormente, provavelmente já no séc. XIX, por outra cultura
vinda das Américas - a batata.
5 - Zona de
cultivo e pasto nas "brandas"
do Furado e do Alhal
O conjunto de
lugares Sistelo, Padrão e Porta Cova, pertencem, desta forma, ao conjunto de
aldeias da Serra da Peneda, que estruturam o seu território através da prática
da transumância vertical, entre as áreas de vale utilizadas todo o ano, e as
áreas de alta montanha, de uso estival, onde implantam as "brandas". Devido à clara dicotomia de uso e função que
separam estes espaços, as técnicas construtivas que caracterizam a arquitectura
tradicional desta freguesia são, elas também, distintas.
Assim, com o
granito como material primordial para todas as construções, nas aldeias
destacamos as habitações, edifícios robustos, com poucas aberturas, defendendo-se
das agruras do clima, em alguns casos encerradas em torno de pátios privados,
aos quais se associam palheiros, construídos com recurso à madeira. A estas
somam-se os espigueiros, em núcleos, como os de Sistelo (recentemente
recuperados), os de Padrão (em dois núcleos no extremo Norte e Poente da
aldeia), ou os de Porta Cova, que montanha acima nos recebem após passarmos o
regato. A arquitectura religiosa, embora presente, não tem marca de
monumentalidade (reservada na serra ao Santuário da Senhora da Peneda e
quartéis de peregrinos, ou outros locais de culto e romagem, como S. Bento do
Cando), sendo, ainda assim, de referir a presença de várias pequenas capelas, a
Igreja em Sistelo, e diversos nichos e alminhas, símbolos da arte e da
religiosidade popular. A estes associam-se, junto aos rios, os moinhos (a sua
maioria de rodízio, alguns com cobertura em granito) e as ruínas do velho fulão
[8] (junto
ao rio Vez em Padrão, no caminho que leva até Paçô do Monte - Merufe), e
interessantes pontes, e pontelhas, que permitiram a passagem dos cursos de
água, e as importantes ligações territoriais.
6 -
Habitações no lugar de Padrão, e núcleo de construções na "branda" da Gêmea
Na zona de
alta montanha a paisagem é claramente distinta, maioritariamente pedregosa,
onde pontuam, nas pequenas chãs mais férteis, os terrenos cultivados das "brandas" e as suas peculiares
construções. Ali podemos encontrar sinais do que foi a cultura primitiva da
montanha, que persistiu até há poucas décadas, onde os pastores e gado
pernoitavam nas noites de Verão, em pequenas casas e cortelhos, [9] a sua
maioria construídas totalmente em granito, com cobertura edificada com recurso
ao sistema de falsa cúpula de granito. Em alguns casos, de dois pisos,
observa-se, ainda, a existência da laje de lareira, onde os brandeiros acendiam o fogo e cozinhavam.
Sugestões de
percurso de visita:
Sistelo
localiza-se cerca de 30 minutos a Norte de Arcos de Valdevez, estando numa
posição geográfica a meio caminho entre a Vila sede de Concelho, e a vizinha
vila de Monção (mais a Norte). Outras distâncias de referência: 1h a Braga ou
Vigo e 1h30m ao Porto.
7 - "Castelo" de Sistelo, Ponte no
Rio Vez (em Padrão) e vista do lugar de Padrão
1 - Uma
visita a Sistelo poderá começar pelo seu núcleo central (Sistelo - Igreja),
onde se implanta uma das mais marcantes construções da freguesia - o chamado "Castelo de Sistelo" -
habitação romântica oitocentista, construída por um filho da terra emigrado no
Brasil, e que regressado implementou um conjunto de obras e melhorias na
aldeia. Ainda na aldeia podem observar-se dois núcleos de espigueiros, a Igreja
Paroquial e diversas habitações tradicionais (algumas recuperadas e em
funcionamento como Turismo Rural). Uma descida até ao rio, através de
centenários degraus, permitirá a visita a velhos moinhos e um primeiro contacto
com a zona dos socalcos.
2 - Para
reconhecer a área monumental dos socalcos de Sistelo é imprescindível subir até
às aldeias de Padrão e Porta Cova, entre as quais a paisagem assume
características verdadeiramente deslumbrantes. Quem observe, de topo, o lugar
de Padrão, pode aperceber-se da sua implantação, numa pequena área aplanada,
dominando sobre as áreas de cultivo. Em cada uma das aldeias ainda é possível
observar traços da arquitectura rural tradicional. Padrão tem dois núcleos de
espigueiros bastante interessantes, e é precisamente desde esses núcleos que
conseguimos obter as mais impressionantes vistas sobre os socalcos.
3 - É
possível subir até à "Branda"
do Alhal de automóvel, apercebendo-se, durante a subida, da forte transição
entre as áreas de vale e montanha. Na "Branda"
do Alhal tomará um primeiro contacto com a realidade das "brandas", existindo ainda em bom estado de conservação
diversas construções em Falsa Cúpula de Granito e pequenas casas, de dois pisos.
4 - De forma
a percecionarmos a realidade territorial de cada uma destas aldeias, e as distâncias
e percursos entre aldeia / "branda"
(a dicotomia Inverno / Verão da vida serrana de Sistelo), bem como as
diferenças marcantes na paisagem e no clima, sugere-se que se percorra uma
destas unidades a pé, desde a parte baixa de vale encaixado, até à parte de
alta montanha:
a) Em Padrão, é possível iniciar
um percurso junto à aldeia, descer por entre socalcos até à parte baixa junto
ao rio Vez, onde se implantam os moinhos junto à velha ponte. Posteriormente
subir até à "branda" do Alhal e depois, num percurso que nos leva até
próximo dos 1000m de altitude, à "branda"
da Gêmea, na qual subsistem os mais peculiares conjuntos de falsas cúpulas de granito.
b) Um percurso de compreensão do
mesmo género, mas correspondente à realidade territorial de Porta Cova, é
possível fazer a partir deste lugar, subindo a velha calçada que nos levará a
percorrer a serra, com o Vez ao nosso lado, passando pelas "brandas" de Crastibô, Lapinheira e subindo até à do
Furado (esta também próxima dos 1000m, e já na confluência dos concelhos de
Arcos de Valdevez, Monção e Melgaço).
8 - Conjunto
de espigueiros em Porta Cova, e construções na "branda" da Gêmea
[1] Arcos de
Valdevez, 1986. É Arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do
Porto, onde concluiu em 2011 o Mestrado em Arquitectura com a Dissertação «Construção
do Território e Arquitectura na Serra da Peneda. Padrão (Sistelo) e as suas
"brandas" - um caso de estudo» (orientado pelo Arq. Rui
Pinto), a qual obteve Menção Honrosa no I
Prémio Ibérico de Investigação em Arquitectura Tradicional. Em 2013 concluiu
o Curso de Estudos Avançados em Património Arquitectónico, tendo ingressado no
mesmo ano no Programa de Doutoramento em Arquitectura da FAUP, onde atualmente
desenvolve, sob orientação do Prof. Doutor Pedro Alarcão e do Prof. Doutor João
Garcia, a tese «Património Arquitectónico e Organização do Território
Transfronteiriço, nas montanhas Galaico-Minhotas».
[2] Projecto de
Aproveitamento Hidroeléctrico de Sistelo, que pretendia construir uma
mini-hídrica no troço inicial do Rio Vez, entretanto chumbado pelo parecer
negativo das entidades competentes.
[3] "Carta de Foro de Monte Leboreiro quod
vocatur Padron", 15 de Janeiro de 1271
[4] Corga - pequeno
ribeiro, ou regato.
[5] Testamento
de Mumadona in Terra de Valdevez e
Montaria do Soajo, Eugénio de Castro Caldas, p.63
[6] "Branda" (ou veranda) - espaço
de alta montanha, associado à transumância, utilizado durante os meses de
verão; local onde pastam os gados entre os meses de Março/Abril até
Setembro/Outubro. É composta por espaços de pasto, em alguns casos de cultivo,
e diversas construções, onde pernoitam os pastores e animais. Na serra da Peneda
cada aldeia possui duas, ou mais, "brandas"
no alto da serra, que podem ser de um dos seguintes tipos: a) "brandas" de gado - exclusivamente
pastoris; b) "brandas" de
cultivo - de uso pastoril e agrícola, onde cultivam centeio e batata; c) "brandas" de maior permanência
- na freguesia da Gavieira o núcleo doméstico desloca-se, nos meses de verão,
para a "branda", descendo
nos de inverno para a aldeia. Terminologia e sistema semelhante ao galego e
asturiano "braña".
[7] Cachadas - ou
cavadas - preparação do terreno, na serra, para o cultivo; no séc. XVIII o
pároco de Carralcova (Arcos de Valdevez), descreve desta forma o uso pastoril e
agrícola das "brandas" - "...e no tempo dos mezes de Verão como
hé Junho, Julho e Agosto vão os moradores da dita freguezia apascenntar à dita
serra o gado vacum e a maior parte do anno o gado meudo (…) em algumas
partes os pobres moradores fazem cachadas para o centeio" (Memórias
Paroquiais de 1758)
[8] Fulão (ou
pisão) - tecnologia tradicional, movido a água, destinado a pisar panos de lã e
serguilha.
[9] Cortelhos - construção
rudimentar, feita em granito, onde se abrigam os brandeiros e gados. Em algumas "brandas"
distinguem-se os "cortelhos" (mais pequenos e destinados aos
animais), das "cabanas" (feitas com a mesma tecnologia, mas de
maiores dimensões e destinadas aos pastores). Os cortelhos de grandes
dimensões, destinados a moradia dos brandeiros, também se designam, em alguns
locais, de "cardenhos".